Advogado na sede da ONU em Viena, velho adepto das grandes causas africanas de nosso tempo, tive a honra de admirar na casa dele, fotos suas com Amílcar Cabral, Nelson Mandela, Sam Nujoma e tantas outras enormes e memoráveis figuras do renascimento africano as quais, de algum modo meu amigo esteve ligado por dever de ofício ou militância. Estar perto de uma pessoa associada tão diretamente à história moderna do negro africano me fazia ficar exultante. Sentia-me assim também muito próximo daqueles gigantes lutadores pela liberdade dos homens, orgulhos da raça humana, heróis da minha geração.
Mas demorei muito a assimilar a contrariedade de Kwame. Ela me constrangia e envergonhava bastante. Sentia-me enquanto negro brasileiro um pouco diminuído, num sentimento de inferioridade estranho para uma pessoa como eu que sempre se vangloriou de sua combatividade, seu engajamento político, de sua militância enfim.
Mesmo orgulhoso de, inusitadamente ser o professor de marimba africana de um africano real – Pasmem, mas é isto mesmo! Bem antes de ser meu amigo, o já velho Kwame (desconfio eu um membro destacado de alguma casta da nobreza ashanti, segundo pude testemunhar numa festa de reverentes conterrâneos seus) fora educado num liceu de Accra, onde havia tocado piano. Um africano refinado como europeu, digamos assim, mais, sobretudo um africano com um recôndito desejo de aprender a tocar um instrumento musical de sua cultura ancestral.
Kwame comprou o instrumento que – imaginem!- eu mesmo havia fabricado no Brasil e levado para Viena. Um ano depois Kwame acabou se tornando meu aluno, numa inusitada relação cultural invertida entre um brasileiro afro-descendente e um africano ‘legítimo’.
Isto me animava e redimia um pouco, mas devo reconhecer que demorei algum tempo mais para compreender de onde vinha aquele sentimento de quase desprezo de Kwame pelas minhas lamúrias de negro brasileiro revoltado.
” Há racismo lá no Brasil? E vocês, sendo tantos como são, aceitam?”
Era esta a admoestação mais recorrente que ele me fazia, querendo dizer com isto que talvez nós estivéssemos sendo condescendentes demais, omissos demais diante das afrontas e impedimentos que o racismo nos impunha. Jamais consegui convencê-lo da força insuperável das amarras que nos tolhiam.
Jamais me recuperei daquela sensação de fera afrontada. Fiquei até hoje achando que talvez falte mesmo em nós, brasileiros – e isto estava explícito no sentimento honesto de Kwame, o africano – a consciência do que significa ser mesmo um afro-descendente, um negro-africano desgarrado, além da vívida sensação que temos do estigma, da pecha de ignorantes, despreparados e submissos que carregamos nas costas.
Reconheçamos que só os nossos antepassados africanos, trazidos para o Brasil como escravos, manietados e subjugados pela força bruta, é que tiveram o direito de incorporar, de assimilar, de se curvar diante da opressão (mesmo fingidamente que fosse, saltando para trás como os capoeiristas negaceando o golpe) por necessidades de sobrevivência física.
Reconheçamos, sobretudo que, mesmo assim, mesmo podendo se acovardar diante da força bruta e da morte, muitos de nossos antepassados ainda assim, insubmissos morreram, lutando, apenas para nos legar as lições e o sangue de sua descendência.
Sei que são palavras amargas no dia em se deveria apenas exaltar nosso orgulho, mas me ocorreu dizer agora mesmo que falta-nos talvez e ainda – a consciência negra plena e profunda – o traquejo para manejar ferramentas válidas da insubordinação e da revolta, a consciência ampla dos nossos direitos – não de negros tão somente, mas de homens – direitos básicos humanos enfim, ainda hoje quase que apenas concedidos por brancos ‘bons’, ‘solidários’ ou ‘piedosos’ – e muitos o são honestamente, coitados – e quase nunca conquistados pelo esforço organizado de nós mesmos, a reboque de nossas geralmente pífias lideranças, oportunisticamente aboletadas nos poleiros do poder.
Talvez falte a nós, negros brasileiros, o instinto africano de romper enfim, de uma vez por todas, com a escravidão emocional que ainda está entranhada em nós. A consciência de que, haja o que houver, façam o que fizerem para nos submeter, somos e seremos livres sempre sim.
Depois desta estada em Viena – ironicamentea pátria de Adolf Hitler – trocando lições de negritude com Kwame Opoku, o africano, passei sempre a observar melhor a diferença sutil que existe entre ter consciência negra e ter a consciência de ser negro.
A primeira consciência (a de ter) reside na profunda e refletida compreensão dos valores morais, éticos, sociais, culturais enfim contidos na herança africana de irmãos na diáspora, a busca incessante pela essência de ter a África simbólica dentro de nós, de ter humanidade enfim, onde quer que se esteja neste vasto mundo. A consciência de si per si, de sermos nós mesmos os reis, cada qual com mais um rei seu na barriga.
A segunda consciência (a de ser) seria manter a alma inquebrantável, a consciência ideológica limpa, adquirida na convivência com a exclusão social reiterada e o racismo num país que tem negros, mas que também tem – fazer o que? – brancos, na busca de saídas para fazer a ‘coisa certa’ junto com a maioria – e não no oco de uma minoria ‘negra’ de ocasião, no convescote de uma casta sórdida – para romper as barreiras mentais de nossa submissão, daquela escravidão emocional que nos aniquila e avilta a todos.
A consciência sócio racial de jamais ficar trancado no gueto escuro de nós mesmos, na síndrome da dicotomia que, separando maquiavelicamente negros de brancos, perpetua e legitima a desigualdade, assim justificada pelas alegadas diferenças de um – a branca elite – supostamente sempre superior aos demais – todos aqueles que não sendo brancos, passam a ser negros, simplesmente por exclusão.
A consciência plena de saber se colocar acima deste mundo de iniquidades que o racismo introjetou nas cabeças de nós todos, negros e ‘brancos’ do Brasil.
A consciência enfim de que, para todos os efeitos, o Brasil é essencialmente um país com negros, que só atingirá o ansiado sucesso de seu processo civilizatório (como dizia o saudoso Darcy Ribeiro) no dia em que tiver consciência de sua natureza pan-africana, super humana de ser, quando tiver, definitivamente se assumido como Brasil brasileiro de todos nós.
Nunca mais vi Kwame Opoku, o africano. Dele tenho notícias esparsas, sei, por exemplo, que se aposentou do trabalho na ONU. Depois que deixei de vê-lo muita coisa mudou. Mandela foi libertado, por exemplo. A África do Sul virou uma grande nação. Angola caminha para isto, a África sofrida ainda em certos bolsões renitentes de ditadura e pobreza também e sobretudo, anda.
Desejaria neste Dia da Consciência Negra no Brasil que nós, os negros e os brancos deste nosso país de sonhos perfeitamente realizáveis e angústias passageiras, fizéssemos um exame de consciência e partíssemos para a luta às nossas próprias custas e riscos, certos de que assim - e só assim – a vitória será certa.
~ Spirito Santo ~
(http://www.spiritosanto.wordpress.com/)
ENGLISH
Many years ago when I lived in Vienna, Australia, Kwame Opoku from Ghana, a good friend of mine (who I met in Europe), decided to confess his opposition to the fact that I was unable to do certain things in Brazil because of the irreversible racism.
He was an attorney that worked at the United Nations Headquarters in Vienna and an adept of the great causes of our times. I had the honor to appreciate pictures of him taken with Amilcar Cabral, Nelson Mandela, Sam Nujoma and many other memorable figures that were part of the African rebirth. My friend was connected with these individuals either because of his profession or militancy. Either way, being so close to a person that was directly associated to the modern history of the black African made me feel exulted. I also felt like this when I was close to those giant fighters of men who represented pride in the human race and the heroes of my generation.
It took me a long time to understand Kwame’s contradiction. It intrigued and shamed me a lot as I felt, as a black Brazilian, a bit lowered with a weird feeling of inferiority to a person that was just like me that, yet feeling vain glory for his spirit of combat, political engagement, militancy, etc.
Well, before becoming my friend, Kwame (he suspected I was a member of a noble Ashanti cast, as I was able to find out from one of his countrymen) attended high school in Accra, where he played the piano. He was an African refined like a European, so to speak, but above all an African with a burning desire to learn how to play an instrument of his ancestral culture. Needless to say, becoming his teacher of the African “marimba” (a musical instrument) to this “real” African was both astonishing and unusual. But that was it! Just imagine - Kwame bought the instrument that I had made in Brazil and took it to Vienna. A year later, Kwame became my pupil through a cultural relationship between an African-Descent Brazilian and a native African.
This made me excited and redeemed a bit. But I must admit that it took me some time to understand the nature of that feeling of disdain for Kwame, for my lamentations of a revolted black Brazilian.
“There is racism in Brazil? And all of you, being as many as you are, accept it?
This was the admonition more recurrent that he made, trying to say that maybe we were too condescending and dismissive of the comforts and obstacles that racism imposed on us. I was never able to convince him of the insuperable forces of the mooring cables that hindered us. Nor did I ever recover from that sensation of a confronted wild beast. Until today, I have thought that maybe, in reality, something lacks in us Brazilians. And this was explicit in the honest expression of Kwame, the African. The consciousness of what it means to be a person of African descent, a misguided black African, besides the stigma that we experience of ignorant, non-educated and submissive people that we carry on our backs.
We should recognize that only our African ancestors brought to Brazil as slaves, subjugated by brutal force, are the ones who had the right to incorporate, assimilate, and submit before oppression (even pretending, jumping backwards like the capoeiristas dodging the kicks) for physical survival.
We should also recognize, however, that being able to become cowards before brutal forces and death many of our ancestors died not submissively but fighting to leave us a legacy and lessons from the blood of their ascendance.
I know these are bitter words in days we should be exalting our pride but I have decided to say it right now that something is lacking in black consciousness - the knack to manage valid tools of subordination, of revolt, and the ample consciousness of our rights not only for black people but for the basic human rights of all men. These rights are usually only granted to a “good” white person, “solidary” or “generous”. Many are poor men and almost never conquered by our own organized efforts, carried by our generally faulty leadership, opportunistically placed in power.
Maybe something is missing in us black Brazilians - the African instinct to break, once and for all, the emotional slavery that is still engrained in us; the consciousness that whatever happens, what is done to submit us, we are and will always be free, indeed.
After my stay in Vienna, ironically the homeland of Adolf Hitler, exchanging lessons on blackness with Kwame Opoku, the African, I started to observe better the subtle difference that exists between to have black consciousness, and to have the consciousness of being black.
The first one (to have) dwells in the profound and reflecting understanding of moral values, ethical, social, cultural, etc., contained in the African heritage, of brothers and sisters in the Diaspora, seeking incessantly for the essence of having the symbolic Africa within us, to have humility wherever we are in this world.
The second one (to be) would be to keep the unbroken soul, the clean ideological consciousness, acquired in dealing with repetitive social exclusion and racism in a country with black and white people (what should we do!) looking for ways to do “the right thing” along with the majority. This is usually accompanied by the occasional black minority, at the “picnic” of a sordid cast, trying to break the mental barriers of our submission, of that emotional slavery that annihilates and lowers all of us.
The socio-racial consciousness will never be enclosed in the dark ghetto of our own, in the dichotomy syndrome, that separates diabolically, blacks and whites, perpetuates and legitimates inequality. This inequality is justifiable by the alleged differences of one, the white elite, supposedly always superior to all others. All of those that are not white are considered black simply by exclusion.
The plain consciousness to know how to excel in this world of inequality that racism injected in the heads of us all, blacks and “whites” of Brazil.
The consciousness, anyway, that Brazil is essentially a country with black people will only reach the awaited success of its civilizing process (as Darcy Ribeiro would say) on the day that it has a consciousness of pan-African nature and one that is super human. It will come when it has assumed the Brazilian in all of us.
I did not see Kwame Opoku, the African, after leaving Vienna. I have received random news. For example, that he has retired from United Nations. After seeing him for the last time, many things changed. Mandela was freed from prison. South Africa became a great nation. Angola is walking toward the same goal. The suffered Africa, under renitent pockets of dictatorship, and poverty, still lives on.
I wish, on this Day of Black Consciousness in Brazil, that we blacks and whites of this country of ours of perfectly accomplishable dreams and temporary anguishes, make an assessment of consciousness and start the struggle at our own expense, knowing this is the only way we will be able to know that the victory is assured.
~ Spirito Santo ~